segunda-feira, 23 de julho de 2012

Revista Época

http://revistaepoca.globo.com/tempo/noticia/2012/07/pobres-advogados.html

Pobres advogados

A Defensoria Pública da União dá assistência jurídica a quem não pode pagar. Mas sofre com a falta de quadros, estrutura e autonomia

MARTHA MENDONÇA

O paraibano Serafim Simeão, de 71 anos, é o oitavo de 20 irmãos. Migrou para o Rio de Janeiro há 50 anos. Fez bicos, trabalhou numa cooperativa de táxis e, depois de sofrer oito assaltos, passou a atuar como pedreiro. Há cinco anos, sofreu um derrame, que lhe deixou sequelas em todo o lado esquerdo do corpo. Simeão caminha mancando. Um dos braços não lhe obedece. Viúvo, mora numa casa alugada em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Quando foi atrás de sua aposentadoria, descobriu várias irregularidades em suas contribuições. Por isso, não teria direito a um benefício. Impedido de trabalhar, não sabia como pagar suas contas.

Num dos postos do INSS, um porteiro sugeriu que ele procurasse um lugar de nome “complicado”: a Defensoria Pública da União, perto do mercado popular da Uruguaiana, um dos formigueiros humanos do centro do Rio de Janeiro. Simeão pegou dois ônibus para chegar até lá. Decisão acertada. Depois de receber assessoria jurídica da DPU, há quase um ano ele recebe seu benefício. Seu caso foi coberto pela Lei Orgânica de Assistência Social (Loas), que permite a pessoas carentes ter direito a um benefício assistencial. Ele agora ganha um salário mínimo – R$ 622. Pouco, se comparado a seus gastos: R$ 200 de aluguel e contas gerais, mais pelo menos R$ 80 de remédios para pressão e colesterol todo mês. Fora a comida. Uma das cinco filhas o ajuda quando pode.

A história de Serafim Simeão é semelhante à de muitos outros brasileiros que, no momento de se aposentar, deparam com problemas de contribuição ou com a própria burocracia. A atuação das Defensorias Públicas da União tem sido sinônimo de sobrevivência na vida de gente como ele. Mas esse órgão, cuja missão é representar o cidadão em ações contra a União, ao oferecer assessoria jurídica a brasileiros carentes, precisa de advogados. Em suas sedes, espalhadas pelas capitais e por algumas outras poucas cidades, a DPU tem estrutura muito aquém de sua importância. O corpo de defensores é considerado pequeno demais: 474 para todo o território nacional. Do outro lado da mesa, defendendo os interesses – também legítimos – da União, a Advocacia-Geral da União (AGU) conta com a ação de quase 7.970 advogados.


As instalações das DPUs são precárias, com equipamentos e infraestrutura ultrapassados. O quadro administrativo é mínimo. “Os defensores instalam cabos, saem para comprar papel e copo de plástico, muitas vezes do próprio bolso”, diz o advogado Eraldo Silva Junior. Por dois anos, ele liderou a equipe da DPU no Rio de Janeiro. Marcus Vinicius Lima, defensor-chefe da DPU de São Paulo, conhece bem esse enredo. “Aqui estamos sem contrato de manutenção. A bomba de água enguiçou, tive de ficar quatro meses ligando e desligando todos os dias, eu mesmo. E não ganho nada pelo cargo de chefia. Coordeno tudo mantendo minhas atribuições regulares de defensor.”

São Paulo, o Estado mais populoso do Brasil, tem o maior número de defensores: 60. No Rio de Janeiro, são 46. Em Estados com menos habitantes, mas dimensões territoriais imensas, como o Amazonas, há sete – e somente na capital, como ocorre na maioria dos outros Estados fora do eixo Sul-Sudeste. Para chegar a Manaus, onde fica a sede da DPU amazonense, pessoas das comunidades ribeirinhas viajam até cinco dias de barco para conseguir assessoria jurídica gratuita. A imensa maioria das subseções da Justiça Federal no país não tem uma unidade da DPU. Os raros atendimentos itinerantes realizados mostram que, além da necessidade de melhorar as condições das defensorias nas grandes cidades, é urgente levá-las ao interior. Vice-presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos, lotado no Rio de Janeiro, o advogado Thales Treiger participou de um atendimento itinerante na região do Alto Purus, no Acre. O que seria o atendimento de apenas uma tarde transformou-se num trabalho de três dias. “Fizemos de tudo: de conciliação em briga de vizinhos a uma audiência com índios por uma questão territorial”, afirma.

A falta de estrutura das DPUs deixa algumas áreas dos direitos dos cidadãos descobertas. Com as imensas demandas nas áreas cível (que envolve remédios e equipamentos), previdenciária e criminal, perdem as questões trabalhistas ligadas à União. Quem enfrenta entraves com algum órgão federal e não tem dinheiro para pagar um advogado fica sem defesa. É o caso da funcionária do Ministério da Saúde Rosana Pereira, de 47 anos. Ela procurou a DPU no centro do Rio, munida de documentos e comprovantes de renda, para tentar conseguir gratificações que deixou de receber durante dez anos. Em vão. “Não vou ter dinheiro para pagar um advogado particular. Não sei o que fazer.”

A assistência jurídica contra o Estado é um elemento básico da cidadania. “Não existe democracia se os cidadãos não têm acesso à defesa contra a União”, diz o jurista e professor de Direito Walter Maierovitch, ex-desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. “A situação das DPUs comunica ao povo que não existe o princípio da igualdade no Brasil. O Estado não pode ter o monopólio da Justiça.” Vinculada ao Ministério da Justiça, a DPU depende do Executivo e da União, para funcionar – e para combater aqueles que a gerenciam. Por isso, muitos juristas afirmam que, para haver verdadeiro equilíbrio, as defensorias deveriam ser autônomas.

Caminho para isso já existe. Desde 2007, está no Congresso um Projeto de Emenda Constitucional que prevê autonomia administrativa, orçamentária e financeira para as DPUs. Hoje, uma DPU depende do Executivo para aprovar orçamento, realizar concurso ou requisitar novos grampeadores. Segundo o projeto, as DPUs poderão enviar suas propostas e projetos diretamente ao Congresso Nacional, sem passar pelo Executivo. As demandas seriam aprovadas pelo Legislativo, que não é o alvo das ações da defensoria. Se não garantir um salto de qualidade imediato, pelo menos as resoluções não estariam mais nas mãos da União. Em 2004, com a reforma do Judiciário, as defensorias estaduais ganharam essa autonomia. As defensorias da União, no entanto, ficaram onde estavam. O projeto da autonomia foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, na Câmara e no Senado, em 2011. Falta agora ser aprovado em plenário nas duas Casas. Mas parou de novo.

As defensorias públicas – da União e dos Estados – foram criadas pela Constituição de 1988 (o acesso à Justiça é um direito de pobres e ricos, diz o texto). Só em 1994, seis anos depois, uma lei regulamentou essa criação. A garantia de assistência jurídica aos mais necessitados é, portanto, uma realidade nova no Brasil. Antes disso, existia apenas a iniciativa de Ordens de Advogados e de universidades, que voluntariamente ofereciam seus serviços a quem não podia pagar por eles. Em 2011, a Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou uma resolução que recomenda uma Defensoria Pública autônoma e independente. O Brasil referendou o documento. Por enquanto, tudo não passa de papel e tinta. “Não existe Justiça sem defensoria pública forte”, diz Pedro Abramovay, jurista e professor de Direito da Fundação Getulio Vargas.

Se a defensoria consegue obter algumas vitórias, elas se devem ao esforço de seus advogados, que superam obstáculos para fazer seu trabalho. Não é fácil atender uma população carente e absorvida por suas questões. A gaúcha Letícia Torrano, de 37 anos, atua na área criminal da DPU do Rio de Janeiro. “Uma vez na DPU, não dá mais para sair. Vira uma missão”, afirma. De familiares e conhecidos, ela costuma ouvir uma pergunta: como ela consegue “defender bandido”? “Vejo nisso um preconceito enorme. Se estivesse numa banca particular, trabalhando por criminosos ricos, será que fariam essa pergunta?”


Quem passa no concurso de defensor público tem cacife para trabalhar em qualquer outra área pública. O salário já foi pior. Hoje é de R$ 12 mil, abaixo de outras carreiras. Ainda assim é uma boa remuneração. A falta de boas condições de trabalho incentiva a rotatividade, embora uma parcela cada vez maior se ocupe da responsabilidade social. A mato-grossense Cecília Lessa da Rocha, de 32 anos, começou sua carreira na Advocacia-Geral da União, em Brasília, defendendo os interesses do governo federal. Hoje, é a subchefe da DPU do Rio de Janeiro. “Queria um trabalho que fizesse diferença real e direta na vida das pessoas. Quando me transferi, minha família brincava que agora, enfim, eu estava do lado bom da força.”